segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Uma estampa de uma obra licenciosa: La Pucelle d'Orléans


Ao longo sete anos deste blog, tenho quase sempre apresentado estampas religiosas, isto é, anunciações, madonas com os meninos, ressurreições, cristos, meninos jesus, santos de quase todo o martirológio romano e ainda muitos outros temas cristãos ditos edificantes. Certamente que alguns dos meus leitores devem achar que eu ando sempre com o credo na boca.
 

Hoje apresento uma estampa, descoberta na Feira de Estremoz, cujo tema me pareceu desde logo insólito. Havia ali qualquer coisa que não jogava bem. Um jovem montado num burro alado salvava uma linda donzela de uma fogueira da inquisição. Ora, os jovens garbosos não montam jumentos, mesmo na mitologia os burros não tem asas e as donzelas comme il faut não ardem nas fogueiras da Santo Ofício.



Fotografei a estampa e cheguei a casa e fiz uma pesquisa no Google pelos versos que lhe servem de legenda Il perce à l'un le sternum et le bras, Il atteint l'autre à l'os qu'on nomme atlas e qual não foi o meu espanto quando descobri que esta gravura foi retirada de um dos livros mais escandalosos do século XVIII, La Pucelle d'Orléans, escrita nada menos nada mais que pelo célebre filosofo e escritor francês Voltaire.
 
Ilustração de edição de 1781
La Pucelle d'Orléans é uma poema heróico cómico que satiriza um dos mitos nacionais da França, Joana d’Arc, explorando todas as ambiguidades da donzela vestida de homem. Foi primeiramente impressa em 1755 como obra anónima, pois Voltaire sabia que estava a mexer com um mito intocável da França, tanto para os crentes como para os não crentes e provocou desde logo um enorme escândalo, ao mesmo tempo que conhecia também um estrondoso sucesso editorial. Só no primeiro ano saíram 6 edições diferentes da Pucelle d'Orléans e no catálogo da Biblioteca Nacional de França contei 41 edições entre 1755 e 1800. Há aliás quem pense que a La Pucelle d'Orléans foi das obras mais lidas na segunda metade do século XVIII. A extraordinária popularidade desta obra teve também a ver com as gravuras que ilustravam o poema, que em algumas das edições eram pura e simplesmente pornográficas. A obra foi rapidamente condenada pela Igreja e remetida para o Index Librorum Prohibitorum, mas avidez pelo público não diminuía e a Pucelle foi traduzida para inglês e italiano e circulavam ainda pela Europa fora muitas cópias manuscritas. Voltaire só reconheceu a paternidade da obra em 1762.
Ilustração de edição de Londres de 1780
Quanto à estampa que o Manel comprou foi desenhada por Nicolas André Monsiau e gravada por Jean Louis Delignon e provavelmente pertencerá a uma edição da última década do século XVIII, feita em Paris por Didot le Jeune. Encontrei referências a duas edições da Pucelle d'Orléans por Firmim Didot, com gravuras dos referidos artistas, uma de 1795, que está em linha  na Biblioteca Real Holandesa, cujas gravuras são iguais, mas que lhe falta as legendas e outra de 1797 que não encontrei digitalizada. Por exclusão de partes,  presumo que esta estampa terá sido retirada da edição de Paris, de Firmin Didot, de 1797, mas posso-me estar a enganar-me. 
Ilustração da edição de Paris, de Firmin Didot de 1795. Os artistas da gravura são os mesmo, a moldura também, mas não apresentam a legenda em verso da gravura do Manel. 
A reputação de obra licenciosa da Pucelle d'Orléans permaneceu intacta no século XIX e ainda durante século XX. Durante essa época, na Biblioteca Nacional de França, as várias edições da A Donzela de Orléans de Voltaire estavam depositadas numa secção à parte, conhecida pelo inferno, juntamente com muitos outros livros considerados pornográficos. Era necessária uma autorização especial para os consultar e quando vinham à sala de leitura era colocado uma espécie de biombo na mesa do leitor, para que as imagens licenciosas não chocassem os restantes leitores.

Hoje, esta estampa, que ilustrava o canto VII da Pucelle d'Orléans evocará na parede da casa do Manel todo o universo da literatura licenciosa do séc. XVIII.
 

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

O mercado de Chaves, a Aninhas Vitorino e a minha avó Mimi: algumas memórias

A minha avó Maria do Espírito Santo Montalvão Cunha
Há pouco tempo enviaram-me por e-mail um link para o blog de um fotografo francês, Gérald Bloncourt, que nos anos 60 e 70 esteve em Portugal, a fazer uma série de fotografias sobre Trás-os-Montes, onde captou a miséria e a pobreza daquela região, com a beleza que só o preto e branco torna possível. Ao vaguear neste blog, descobri umas quantas imagens, tiradas no antigo mercado de Chaves, que me tocaram particularmente, pois parece que fixaram na película, as recordações que guardei desse espaço durante minha infância.

O mercado de Chaves, Foto de Gérald Bloncourt. Ali perto situava-se o estabelecimento da Aninhas Vitorino

A minha avó Mimi vivia num apartamento em Chaves, na Rua Cândido dos Reis, com vista para o mercado de Chaves. Nós, que éramos miúdos, adorámos ver da varanda todo aquele movimento do mercado, com as mulheres de grande buço a transportar à cabeça cântaros enormes, gente a carregar gaiolas com galinhas e toda aquela animação característica dos mercados. Muitas vezes, saíamos de casa e andávamos pelo mercado, atordoados por aquele barulho, formado a partir dos gritos das mulheres e dos homens, do grasnar dos gansos e cacarejar das galinhas e de muitas conversas em francês. Julgo que foi no mercado de Chaves que comi tremoços pela primeira vez. 

O mercado de Chaves, Foto de Gérald Bloncourt
A minha avó que era uma mulher chique, claro nunca ia ao mercado. Mandava a criada fazer as compras. Na sua opinião uma senhora com “S”, maiúsculo não deveria ser vista no mercado, no meio da hortaliça e das peixeiras. Claro, está a criada nem queria acreditar na sua sorte e para comprar meia dúzia de ovos, salsa, uma galinha e uns pêssegos passava a manhã inteira no mercado, na conversa com este e com aqueloutro, em vez de estar em casa, fechada a fazer limpezas ou a engomar.
A minha avó era uma mulher chique

Talvez a Mimi só passa-se pelo mercado quando este estivesse fechado, a caminho da Rua Longras, onde se situava o estabelecimento comercial da Aninhas Vitorino (1*), casa que abasteceu de tecidos, durante duas ou três gerações, as senhoras de Chaves. Mesmo assim, creio que preferia fazer uma volta maior, pelo largo do Arrabalde, para ir à Aninhas Vitorino, só para não ter de passar pelo mercado. Muito ouvia eu falar à minha avó e às minhas tias da Aninhas Vitorino e dos tecidos que tinha acabado de receber. Creio que a par das criadas, do tempo e das doenças, a Aninhas Vitorino era um dos principais temas de conversa das senhoras da boa sociedade flaviense. Lembro-me bem de acompanhar a Mimi até ao estabelecimento da Aninhas Vitorino, onde existia um grande balcão de madeira que separava os clientes das estantes onde eram arrumados metros e metros de sedas, algodões, chitas, crepes e eu sei lá que mais. Claro, a minha avó era uma chata, daquelas que mandava tirar os tecidos todos e depois não levava nada. Aliás, tenho ideia do meu pai me contar, que certa vez, foi a uma sapataria e experimentou tanto sapato, que no final voltou com dois sapatos do pé esquerdo. Mas também era um tempo em que não havia pressas e um vestido novo era uma coisa maturada, um processo longo. Primeiro consultava-se os figurinos, o nome que se dava então às revistas de moda, depois escolhia-se o tecido, mas sem ser ao primeiro impulso, pois trazia-se amostras da casa das fazendas e só depois de algum tempo tomava-se a decisão final e voltava-se novamente à loja, neste caso, à Aninhas Vitorino, onde a minha avô, que era muito sovina, comprava sempre o tecido com a medida à justinha. Depois, quando mandava fazer o casaco ou vestido, a modista deitava as mãos à cabeça porque a Mimi obrigava-a fazer bainhas com um centímetro de altura e por vezes ainda menos, pois a peça de fazenda ou algodão era muito pequena.

Não sei se hoje em dia essa instituição da elegância flaviense, o estabelecimento da Aninhas Vitorino ainda existe. O mercado foi destruído nos anos 80 e em seu lugar construíram uns blocos de apartamentos, tão altos quanto feios. A minha avó morreu nos anos 90, as criadas desapareceram, o Portugal miserável que Gérald Bloncourt fotografou no final dos anos 60 alterou-se profundamente, as desigualdades sociais diminuíram e hoje muito democraticamente todos fazem compras no hipermercado, independentemente do nível social a que pertencem.


1: Nota: O estabelecimento de Aninhas Vitorino já existia em 1915 na Rua das Longras, com o nome "Vitorino Teixeira", conforme se pode ler nas páginas 42 e 43, do "Guia-álbum de Chaves e seu concelho / Manuel António Rodrigues. - Chaves: Liga de Instrução e Beneficência, 1915". Portanto, nos anos 60 e 70 Vitorino era já uma casa comercial com tradição na cidade Chaves

sábado, 8 de outubro de 2016

Chávena de faiança com um casario usado pela fábrica de Vilar de Mouros.

Cada vez que sai um livro novo sobre faiança, nós, os amadores de faiança, corremos a compra-lo e a comparar tudo o que ali é reproduzido com as loiças antigas lá de casa, que há muito aguardam identificação. Para os menos familiarizados com a faiança portuguesa, há que explicar que raras são as peças marcadas, os fabricantes usavam decorações e moldes semelhantes, de modo que tentar atribuir uma terrina ou um prato do século XIX ou início do XX a um centro de fabrico, Porto, Lisboa, Coimbra ou Viana é um risco, que pode significar um erro grosseiro. Por essa razão, a publicação de novos catálogos ou monografias sobre faiança é tão importante para ajudar o coleccionador amador a identificar as suas peças.

Recentemente foi publicada a obra A fábrica de Vilar de Mouros/ Paulo Torres Bento [et al]. – Vilar de Mouros: CIRV; Câmara Municipal de Caminha, 2015, que teve o grande mérito de apresentar a história e a produção de uma fábrica de que ninguém sabia quase nada. Segundo palavras de Isabel Maria Fernandes no prefácio da obra, este estudo foi feito a partir de (…)algumas centenas de fragmentos recolhidos onde a fábrica funcionou, a que se juntou um conjunto de peças que se encontram na mão de alguns familiares dos antigos proprietários da fábrica ou de pessoas com eles relacionados. Portanto, este é um livro sério, que se baseia em fontes seguras e não numa mera análise de semelhanças de decorações.
No centro está um templete, um pagode ou um chalet, que a Fábrica de Vilar de Mouros usou nas suas produções
Porém, após a leitura do catálogo A fábrica de Vilar de Mouros ficamos ainda mais confusos. A produção de Vilar de Mouros entre 1855 e 1920 é muito semelhante a de outras fábricas do Porto e de Gaia. Algumas das peças ali mostradas nós juraríamos a pé juntos que eram Fervença, outras poderiam eventualmente ser inspiradas em Miragaia, manufacturadas por uma fábrica qualquer de uma das margens do Douro. Há também louça de Vilar de Mouros facilmente confundível com Viana e uma ou outra coisa semelhante às faianças de Coimbra. A Fábrica de Vilar de Mouros fabricou ainda o motivo cantão popular, que os consumidores portugueses do século XIX e da segunda metade do XX adoravam. No fundo, este livro reforçou a ideia que todas estas fábricas portuguesas se copiavam muito umas às outras, até porque precisavam de satisfazer o mesmo gosto dominante do Portugal de então.
Imagem retirada de  A fábrica de Vilar de Mouros/ Paulo Torres Bento [et al]. – Vilar de Mouros: CIRV; Câmara Municipal de Caminha, 2015


Tudo isto vem a propósito de uma chávena com pires que o meu amigo Manel comprou na Feira de Estremoz e que apresenta uma espécie de templo, chalet ou pagode, idêntico a uma terrina de Vilar de Mouros, cuja fotografia está reproduzida na página 107 do livro em causa. Essa terrina está atribuída ao segundo período da fábrica, que decorre entre 1900 e 1920.
 
Imagem retirada de  A fábrica de Vilar de Mouros/ Paulo Torres Bento [et al]. – Vilar de Mouros: CIRV; Câmara Municipal de Caminha, 2015



Claro, esta semelhança não significa que forçosamente a chávena do meu amigo Manel seja de Vilar de Mouros. Pode tratar-se de um motivo decorativo usado por mais que uma fábrica de faiança, como por exemplo, a decoração chinesa do cantão popular. Por outro lado, a faiança da chávena do meu amigo Manel parece de melhor qualidade, que a terrina mostrada no livro. Até tem no tardoz do prato um motivo em relevo feito com muita qualidade e a pasta é mais branca. Mas, pode dar-se o caso de as cores no catálogo não terem ficado bem resolvidas. Quem já trabalhou na edição de publicações de arte sabe que por vezes os gráficos não acertam com as cores e as imagens são publicadas com tons empastelados. A chávena e pires que pertencem ao meu amigo Manel parecem mais antigas, talvez do século XIX, e a terrina publicada no catálogo de Vilar de Mouros está datada do período entre 1900-1920. Enfim, pode dar-se o caso de este ser um motivo repetido ao longo de várias décadas de laboração da fábrica ou então a chávena parecer mais antiga, por causa da ingenuidade da composição. As obras ingénuas parecem sempre ancestrais, porque repetem fórmulas e decorações antigas.
No tardoz do pires há um filete picotado muito bonito

Enfim, não posso fazer muito mais do que afirmar que o motivo decorativo da chávena do Manel é idêntico ao de uma terrina fabricada por Vilar de Mouros. Juntei duas peças de um puzzle. O resto virá com o tempo.