sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Bom Deus: azulejos do Museu Regional de Beja

Pormenor da vida de S. João Baptista. Azulejos atribuídos a Policarpo de Oliveira Bernardes

Recentemente voltei Beja com o Manel para mostrarmos a um amigo nosso brasileiro, o Fábio, aquilo que é uma espécie de capela Sistina do azulejo português, o Museu Regional de Beja, Rainha D. Leonor. É um daqueles monumentos únicos e nem sei como é que nenhuma autoridade local se lembrou ainda de candidatar aquele antigo convento a património mundial da UNESCO. Talvez as autoridades andem demasiado distraídas a procurar classificar chocalhos e bonecos de barro para se lembrarem do Museu Regional de Beja. Mas, enfim, não vou prosseguir com este assunto, pois não pretendo ensinar a ninguém as opções a tomar numa política de defesa do património.
O claustro
Na verdade, no meio de toda aquela azulejaria fantástica, de todas as épocas e estilos, que invade o interior do antigo Convento da Conceição, houve uma imagem de Deus Pai surgindo do alto das nuvens, que me chamou a atenção. A figura correspondia exactamente a ideia que eu tinha de Deus na minha infância, um senhor mais idoso, que via tudo e que saia lá do alto, para corrigir os erros dos homens, ou castigar meninos que mentissem. Cheguei a perguntar a minha tia Lalai se Deus conseguia realmente ver tudo lá do alto, mesmo as formiguinhas, e ela claro, respondeu-me sem quaisquer dúvidas que sim. Foi este Deus que acompanhou a minha infância, a quem pedia para fazer que eu não tivesse muitos erros no ditado, pois tinha medo das reguadas (os professores primários costumavam dar uma reguada por cada erro de ortografia). Foi também a este Deus que na minha adolescência eu pedia inutilmente que me fizesse igual a todos os outros. Claro, na altura não tinha estudado filosofia ou religião para saber que os negócios com o bom Deus não se fazem na base do toma lá, dá cá, isto é, uma troca de orações por favores, mas a ideia que existia alguém lá acima a quem se podiam fazer as mais íntimas confissões era reconfortante.

Azulejos do interior claustro
Depois no final da juventude, apercebi-me que só eu próprio poderia fazer alguma coisa por mim e que o Deus Católico não estava muito pelos ajustes com rapazes com os meus gostos sexuais. Deixei de contar com Deus na minha vida, não voltei a falar com ele e esqueci-o. O Senhor com barbas brancas lá no alto das nuvens passou a ser uma figura da história da arte, uma parte da composição de uma tela do século XVII, de um painel de azulejos ou uma figura de uma escultura da Santíssima Trindade.
Pormenor da vida de S. João Baptista.Azulejos atribuídos a Policarpo de Oliveira Bernardes
 

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Uma bondieuserie: Nossa Senhora em espuma de mar

Meerschaum

Não devia ter comprado a peça que hoje vos apresento. Não preciso dela para nada. Mas como podia eu resistir a esta pequena escultura em espuma de mar, tão requintadamente trabalhada e que cabe nos dedos de uma mão?
Foto retirada de Pinterest
Como já expliquei em outros posts estas pequenas esculturas foram fabricadas ao longo da segunda metade do século XIX em França e eram compradas pelos peregrinos nos santuários e centros de peregrinação, como por exemplo Lourdes.

A espuma de mar costuma ser conhecida pelo nome alemão Meerschaum.  Contudo, nem todas estas peças são feitas em espuma de mar, algumas são feitas numa argila muito fina semelhante ao caulino, que os franceses designam por terre  de pipe
Vendidas nas lojas de souvenirs religiosos, estas peças, bem como as pagelas, os terços, as imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Maria, são conhecidas em França pelo termo pejorativo bondieuseries, isto é, as traquitanas do Bom Deus.


Hoje, passados 150 anos algumas destas bondieuseries ganharam com o tempo um encanto especial, sobretudo para quem se fascina pelo que passou de moda. É certo que estão longe de serem obras de arte de museu, mas quem esculpiu as pregas do véu de Nossa Senhora deste medalhão em espuma de mar conhecia o seu ofício. O trabalho é tão delicado que evoca de alguma forma as figuras veladas do escultor italiano Antonio Corradini (1688-1752).

Busto de mulher velada (Puritas), Museo del Settecento Veneziano, Ca’ Rezzonico, Veneza, Antonio Corradini, 1725
Claro, estes medalhões eram feitos em série, pois encontrei uns quanto iguais a este à venda on-line, em França e nos Estados Unidos. Mas apesar disso, eram executados com mestria e permitiam ao cidadão comum ter em casa alguma da beleza da grande escultura clássica.

O medalhão estava muito sujo quando o comprei. Dourada de origem, a moldura tinha sido escurecida com betume judaico e por dentro a escultura estava cheia de restos de pó preto do referido produto. Com muito cuidado, o meu amigo Manel fez o favor de retirar a moldura e o vidro, limpou a escultura e devolveu o dourado à moldura. Além de a peça ter ficado linda, esta operação permitiu-me fotografar a escultura em toda a sua beleza, sem os reflexos do vidro.


Alguns links: