terça-feira, 28 de setembro de 2010

Senhor dos Passos

Não há só ninfas a velar pela minha existência. Na mansarda onde vivo há toda uma corte de santos, virgens e Cristos, que me protegem contra as más sortes contemporâneas, como o aumento do IVA, a EMEL, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, a Reforma da Administração Pública e outras coisas fantásticas feitas a pensar no bem-estar do cidadão. Já tentei contar os cristos na minha casa. Creio que andavam à volta de vinte e tal, mas, entretanto terão entrado outros.

Há quem ache os Cristos macabros e se pensarmos bem, tem uma certa razão, porque um homem, ensanguentado, atravessado por pregos numa cruz é uma imagem terrível de se ver. Há uns anos trabalhei na organização de uma grande exposição retrospectiva de arte portuguesa no Japão e os nipónicos recusaram-se categoricamente a receber Cristos sofredores, descidas da cruz, martírios e outras coisas terríveis com que o Catolicismo romano se compraz. Só aceitaram e ao engano, um menino Jesus, gorduchinho, rodeado de flores, pintado pela Josefa de Óbidos.

Mas, embora não tenha fé, fui educado no gosto eclesiástico dos dourados, da arte sacra, dos azulejos e tenho uma paixão por estes cristos sofredores, com que vou enchendo a minha casa, aqui e acolá. Qualquer soleira da porta ou espaço disponível serve para pôr mais um.
Este Senhor dos Passos, sem cabeleira, sem cruz e com um manto de seda desbotada, que já foi roxa, faz as minhas delícias. Nos finais do Século XVIII ou mais seguramente em príncipios do XIX, uma senhora devota costurou-lhe o manto e executou o bordado a fio de ouro com todo o amor. Depois colocou-o num oratório ou numa maquineta e por um período de mais de 150 anos foi objecto de orações fervorosas. Mas, os tempos mudaram, as senhoras devotas morreram todas e o Cristo foi esquecido num sítio qualquer, deixado ao sol, que lhe desbotou as vestes e entregue à rataria e ao caruncho, que acabaram por lhe destruir a cruz, até acabar no chão da Feira-da-Ladra, onde eu o descobri e lhe proporcionei uma reforma aceitável à sua longa vida milagreira.

O Senhor dos Passos é uma invocação de Jesus Cristo, que faz referência ao trajecto percorrido por Este desde sua condenação à morte no Pretório até o seu sepultamento, após a crucificação no Calvário.

A história desta devoção remonta à Idade Média, quando os cruzados visitavam os locais sagrados de Jerusalém por onde andou Jesus a caminho do martírio e quiseram depois reproduzir espiritualmente este caminho, nas suas terras de origem, sob forma de dramas sacros e procissões, ciclos de meditação, ou estabelecendo capelas especiais nas Igrejas.

A reconstituição do trajecto de Cristo é conhecida pelas Estações ou Passos da Via Sacra, mas falarei neles com mais pormenor noutra altura, já que são tão importantes na história da arte, pois há um sem número de esculturas, gravuras e pinturas alusivas ao tema, que para nós os descrentes, já se tornam difíceis de interpretar.

10 comentários:

  1. Que sortudo, logo encontrou um Santo e no chão...
    Andei por lá no sábado a fazer tempo, também naquela de me acalmar, decorria nessa manhã a tese da pós graduação da minha filha
    Correu bem
    Comprei uns azulejos e uns alcatruzes, há anos que não os via, magníficos
    Quanto ao Senhor dos Passos é deveras lindo!
    Pena o manto estar desbotado, adoro o roxo, é de uma intensidade extasiante
    Uma vez vi uma imagem muito parecida em excelente estado com o manto impecável e a particularidade de sair uma das mãos...adorei, era caro na feira de Algés e fugi dele, porém cá ficou registado na minha memória
    Também gosto muito de Santos, tenho vários espalhados pelas três casas, geralmente compro-os em muito mau estado, gosto dos restaurar à minha maneira e depois adoro enfeita-los com fitinhas nos braços em jeito de procissão
    Mas o seu é digno de um pequeno altar de capela, fiquei cheia de inveja...e já não é a primeira vez!
    Beijos
    Isabel

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  2. Obrigado Maria Isabel.

    Não o achei bem no chão, mas o parágrafo ficava mais composto em termos literários se ele fosse achado no chão..Lol.

    O roxo desbotado é como as rugas daquelas velhas actrizes, decadentes, mas com o charme do passado. Mas um dia, quando tiver uma casa maior gostaria lhe achar um sítio onde ele tivesse uma exposição mais dramática, talvez um nicho alto, onde ele pudesse aparecer a espreitar, tal como nas igrejas, onde ele aparece atrás do altar mor

    Beijos

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  3. Luís
    Não resisto a confessar que soltei largos risos
    Passo dias sem quase falar com ninguém, desde que me habituei a estas lides virtuais, divirto-me à brava
    Adorei a sua confissão..." Não o achei bem no chão, mas o parágrafo ficava mais composto em termos literários se ele fosse achado no chão..."
    O Luís é um homem enigmático cheio de surpresas
    Continue
    Gosto!
    Beijos
    Isabel

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  4. Caro Luís,
    Para além de tudo o resto, tem um sentido de humor notável!
    Também me fartei de rir com as más sortes contemporâneas de q é protegido pelos santos com quem cohabita. Vejo q gosta de salvar santos da ruína e esse Senhor dos Passos é uma belíssima peça de arte sacra, merece bem o salvamento.
    Quanto aos Cristos, acho q tenho uma costela japonesa...
    Eu salvo mais livros, daqueles de capas de pele, todos sujos, cantos dobrados e sebentos, às vezes corroídos pelo bicho. Trago-os para casa, limpo as capas com cera de abelha, colo-os, limpo as folhas, e depois faço uma estufa de desinfestação q consiste basicamente em matar a bicharada por ausência de oxigénio.
    Mas também já temos salvado santos. Comprámos há tempos uma Pietá em avançado estado de degradação, com falta de mãos e partes carcomidas, mas que achámos uma escultura lindíssima. Tratámo-la com muito amor e carinho - limpeza, desinfestação, cera - e está ali bonita, para durar.
    A última aquisição foi uma cabeça de santo. Veja lá, uma cabeça, só e mais nada! Parece de Santo António ou de outro frade santo qualquer.
    Mas é muito lindo. Não sei se terá pertencido a um santo de roca cujo corpo ou estrutura de ripas se tenha desfeito com o caruncho. Já foi limpo mas ainda tem q ir prá desinfestação.
    Temos q continuar nesta missão de salvamentos de peças q de outra maneira iriam acabar nas lixeiras ou nas fogueiras.
    Um abraço
    Maria A.

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  5. Sá para corrigir uma aparente incongruência:
    Quando falo aqui em Cristos, refiro-me aos crucificados. Obviamente o Senhor dos Passos também é um Cristo...

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  6. Hum, creio que uma cruz por aí até que não ficaria mal, daquelas já meio carcomidas. Terei de te encontrar uma!
    Olho para esta tua peça e julgo sempre que lhe falta algo, apesar de gostar dela.
    Fico sempre com pena, e até algo nostálgico, quando lembro que o vendedor dela já deixou a Feira da Ladra!
    Manel

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  7. Caro Manuel

    Já insinuei muito subtilmente quem um dia poderias fazer uma cruz para este pobre Senhor dos Passos. Seria como dares esmola numa Igreja...Lol

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  8. Cara Maria Andrade

    Terá que mostrar a cabeça do Santo no seu blog. Pelo-me por arte sacra.

    É curioso. Também tenho uma paixão por Livro Antigo. Cheguei a tirar um curso com a Fernanda Guedes Campos, aquela Senhora que foi Subdirectora da Biblioteca Nacional e tratei algumas bibliotecas com fundos anteriores a 1800. Foram dos trabalhos mais gratificantes que fiz, mas agora estou afastado dessa área.

    Abraços

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  9. Reparem que este Senhor dos Passos tem mesmo naris de judeu

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  10. Meu caro amigo.

    Jesus Cristo era de facto um Judeu e o autor desta esculturinha não estaria a mentir se a intenção fosse representar Cristo como um hebreu
    Um abraço

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